Prefácio

Sobre a obra em si

Organizado sob a forma de contos, este livro é um percurso de dentro para fora. Chamar-lhe assim é uma abordagem no sentido de se compreender, aquilo que a obra nos revela do ponto de vista intimista. Muitas vazes os autores recorrem à primeira pessoa escrevendo como se se tratasse de um diário, porém, neste conjunto de contos, esta obra leva-nos a um universo de fantasia no qual somos levados a conhecer os diversos personagens que nos são apresentados. A obra tem um fio condutor e os protagonistas dos contos estão relacionados entre si.

Verifica-se uma forma de estar que tem um traço comum ao longo de todo o livro. O autor parece estar a flutuar algures acima dos personagens agindo, assistindo como se fosse parte integrante do texto e como se afinal nada daquilo lhe dissesse respeito. De uma forma mais concreta podemos dizer que entre as ações e as suas consequências de tudo o que ocorre no livro temos apenas circunstância. Não temos pesar, nem julgamento, nem arrependimento. Esta é a mais surpreendente característica desta obra perante as sucessivas graças e desgraças que nos vão surgindo debaixo dos olhos, perante personagens que se encantam desencantam e desgraçam, há uma superioridade que nem sequer podemos chamar de amoral e cuja visão não se pode deixar de verificar ser apenas circunstancial. A sequência de acontecimentos com que somos brindados implica a sabedoria de se perceber que, tal como na vida, homens e mulheres destes contos, agem e reagem porque estão na contingência de o fazer e que o propósito seria precisamente esse. Agir por se estar na contingência de se agir. Caminhar ao longo deste livro é reapercebermo-nos que mais do que termos objetivos, no caminho que são os dias, temos reações, ajustamentos e vontades. Curiosamente esse conjunto, neste livro, não nos faz pensar na ausência de ideias ou de ideais, os personagens são vivos e coloridos, são pessoas de verdade, com sonhos e com amores. Esta é, na verdade, a transparência entre esta obra e o mundo de fora das folhas dos livros. A obra revela-nos muito a turbulência existente na viagem literária que o autor nos dá. Trata-se de uma viagem do interior do autor para o mundo.

Os contos deste livro estão cheios de pequenos pormenores que nos transportam para a miríade de coisas que nos enchem os dias e das quais pensamos não haver história. “Vai à volta” é um termo usado num dos contos, e é uma frase tão verdade como se se tratasse de um dogma da vida deste lado, da vida que todos vivemos todos os dias na rua. Efetivamente é nesses pormenorzinhos que ganhamos a riqueza literária destes contos. Importa atentar sobre passagens como “a Dona Eulália, emérita esposa do senhor Américo, percebeu um “ruidinho estranho e irritante”, e que mais ninguém ouvia”. Somos transportados com muita facilidade para aquele “ruidinho estranho e irritante” porque é isso que este livro nos faz. Refira-se também a passagem “Mais ou menos à hora habitual, ele pedala rua acima, gordito, na sua bicicleta verde, grande demais” que poderia ser uma passagem banal, mas que o crescendo da descrição nos leva a crer que está-se mesmo a ver o raio da bicicleta verde e “ele”.

Este “ele” que percorre o livro, quase sempre no masculino, é uma imagem, diríamos psicanalítica, da junção (evitando propositadamente a palavra simbiose) entre o leitor e o autor. O leitor procura e o leitor encontra “fui dar uma mija e passar as mãos por água” porque na verdade é basicamente a isso que a vida toda se resume. A gente dá uma mija e depois é conveniente que passe as mãos por água. O livro consegue dar-nos essa imensidão de coisas que estão contidas nestes pequenos mimos. Não sem deixar de nos dizer que estamos “sozinhos como habitualmente” sendo que, de alguma forma, lembramo-nos que somos também personagens. Pessoa escreveu que “sou sempre o que esperou que lhe abrissem a porta à frente de uma parede sem porta”, no caso, contextualizando e encontrando-nos com os personagens, apercebemo-nos que “quer que lhe traga outro café? Esse já deve estar frio” pode ser a demanda que define o propósito de quem espera que lhe abram a porta à frente de uma parede sem porta. Por fim, para falar de amor, importa trazer a esta introdução à laia de prefácio, alguns excertos de um conto que fala de amor. Diria que não há nada tão importante como o amor, e que o amor sendo trivial é sempre espantoso. “Como pode ter acabado simplesmente e a realidade agora ser isto, este dia a dia, monótono e repetitivo, igual aos de todas as outras pessoas? Pensava, como se estivesse a abandonar a escuridão de uma sala de cinema.” Ou seja, depois do amor como é que o mundo pode continuar? Este é um pedaço pelo qual já todos os amantes passaram. Porque (cá está o “ele”) “Ele sabia que os sonhos apenas sobrevivem na solidão interior” e “adeus – murmurou antes de passar a porta”. Somos, depois de ler este livro, conscientes de sermos “um cão que ninguém conhecia”.

 

Reflexão sobre o autor

O Autor, Rui Freitas é um criativo, diria com facilidade que é a sua faceta de pintor que faz dele o autor que é capaz de nos transportar para a mancha de cor que está contida naquilo que escreve. A personagem que rasga as páginas do livro e que sobressai em cada linha é o Deus e o demónio que o habitam, diria que tão deliciosamente o habitam. Este confronto entre “ele” e “ele próprio” consegue resultar a ponto de a meio livro já nos parecer que andámos a beber copos com o autor nas últimas duas horas. O leitor experimenta sempre alguma intimidade com o autor. O Rui faz disso a sua maneira de caminhar ao nosso lado ao longo do livro. Pairando por ali, ora como grilo falante, ora como anjo da guarda, ou ainda como o mafarrico que nos incita a fazer toda a sorte de traquinices. O facto de Rui Freitas ser pintor influencia fortemente esta obra, Rui Freitas trabalha intensamente a formulação intelectual que fazemos na perceção do que “nos” escreve. De alguma forma será pertinente pensar-se que estamos perante um quadro ou perante uma sucessão de quadros. Rui Freitas pinta e escreve desde há muitos anos tendo exposto diversas vezes, e é titular de vasta obra na área da pintura. Teve um percurso profissional ligado às tecnologias e, como acontece muito nessa área, mudou completamente de rumo, recusando uma área que, na verdade, não está viva. Vivos estão os seus quadros e o seu texto literário.

No contexto do panorama literário do Século XXI, esta obra e este autor, transportam-nos para uma progressão dos autores realistas, como Miguel Torga, ou no panorama internacional John Steinbeck. Se Steinbeck, que escreveu “bairro da lata” tivesse vivido ou calcorreado as ruas da Lisboa do Século XXI talvez tivesse escrito qualquer coisa de parecido com o que Rui Freitas escreveu nesta obra. Numa profusão demasiado intensa de publicações o panorama literário desta década está a ser acusado de quebra de qualidade. Os papeis dos escritores estão muito limitados àquilo que grandes estudos de mercado sabem que os leitores procuram. Até porque se é verdade que cada vez se publica mais também é verdade que cada vez se lê menos. Um livro que nos trata por tu, como este, é um marco incontornável na literatura de Lisboa.

Alves Redol, tratou, em Portugal, pela primeira vez, temas até aí considerados indignos de tratamento literário. É isto que a literatura faz, inova, traz à luz o que estava na escuridão. O presente livro pelo circunstancialismo em que coloca os personagens, pela lassidão para com o mundo e com o espelho em que se torna para o leitor, consegue fazer estilo, consegue, dentro de um mundo eletrónico, sempre cheio de abordagens novas sob a égide da tecnologia, ser uma abordagem pelo lado das pessoas, carne humana, cabelos e cheiros.

Enfim, não posso deixar de o dizer é o meu amigo Rui aqui todo inteiro.
Jaime Roriz, Lisboa, 26 de abril de 2018.
 
 

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